COISAS NO AR

(parte II)

Prof. Luiz Ferraz Netto

leo@barretos.com.br

Por Que a Natureza Tem Horror ao Vácuo

Nos Diálogos Referentes a Duas Novas Ciências, Galileu ilustra como uma observação da vida diária ¾ a que os filósofos nunca deram atenção ¾ podia ter levado a uma compreensão mais precisa do ar.

Vi uma vez uma cisterna na qual tinha sido instalada uma bomba. O braço da bomba puxava seu êmbolo e a válvula para a parte superior, de tal maneira que a  água se elevava por atração, e não por um impulso, como no caso das bombas que têm o pistão colocado lá  em baixo (na cisterna). Essa bomba trabalhava perfeitamente, enquanto a  água da cisterna se mantivesse acima de determinado nível; mas, abaixo daquele nível, a bomba deixava de trabalhar. Quando primeiro observei esse fenômeno, pensei que a bomba tinha se desarranjado, mas o operário que chamei para repara-la disse-me que o defeito não estava na bomba, mas na  água (nível), que tinha caído muito baixo para que pudesse ser elevada em toda aquela altura; e acrescentou que não é possível, seja para uma bomba, seja para qualquer outra máquina que trabalhe pelo principio da atração, elevar a  água um fio de cabelo a mais do que dezoito cúbitos (cerca de 10 metros); seja a bomba grande ou pequena, este ‚ o limite extremo de elevação.

Galileu refere-se à bomba de "sucção" comum mostrada na ilustração a seguir.

 

Operação da bomba elevatória comum no tempo de Galileu

Elevando-se o pistão como na parte (a), aumenta-se o volume da câmara, mas a arruela de couro do pistão impede o ar de entrar na câmara pela parte de cima. A  água se eleva na câmara porque a pressão atmosférica na superfície da água do poço é superior à pressão na câmara. No curso de descida, parte (b), a válvula é forçada a fechar-se, e a  água passa pelo lado da arruela de couro para o espaço que fica acima do pistão.

No movimento para cima, seguinte, parte (c), mais água é admitida na câmara, enquanto que uma parte da  água que fica acima do pistão é descarregada.

Na época de Galileu, os cientistas acreditavam que a  água é aspirada para a bomba porque a natureza tem horror ao vácuo ¾ o antiquíssimo horror vacui. Galileu foi o primeiro a cogitar por que esse horror cessava subitamente na altura de dezoito cúbitos, ou cerca de 10 metros, como diríamos. Aquilo era obviamente um efeito, que reclamava uma causa.

Isto levou Evangelista Torricelli (1608-1647), discípulo de Galileu, a especular sobre a altura a que o horror vacui podia elevar uma coluna de mercúrio. Sabia que o mercúrio é cerca de quatorze vezes mais pesado que a  água, e por isso suspeitou que a referida altura seria de um quatorze avos de dezoito, ou cerca de 21/2 pés (cerca de 0,76 metros). A experiência foi realizada com o auxílio de um tubo de vidro de cerca de 6 pés de comprimento, que foi fechado em uma das extremidades. Encheu o tubo com mercúrio, vedando a extremidade aberta com um dedo. O tubo foi então invertido e colocado com a extremidade vedada pelo dedo mergulhada em uma tina aberta de mercúrio, conforme se ilustra.

 

 

 

 

 

Barômetro de Torricelli

Embora inicialmente encha o tubo, o mercúrio cai a uma altura de cerca de 29 polegadas (75 cm), quando a extremidade é aberta em uma tina de mercúrio.

Torricelli concluiu que a pressão da atmosfera apenas pode sustentar uma coluna de mercúrio daquela altura.

Quando o dedo foi retirado, o mercúrio do tubo desceu para uma altura de cerca de trinta polegadas acima da superfície do mercúrio da tina. Nenhum ar podia ter entrado no tubo, e assim o espaço livre acima da coluna de mercúrio foi subseqüentemente chamado de Vácuo de Torricelli.

Torricelli suspeitou que a coluna de mercúrio era sustentada pela força nascida pela pressão atmosférica que atuava sobre a superfície livre do mercúrio. Atribuiu as pequenas variações do nível da coluna às alterações diárias da pressão atmosférica. Mais tarde, Blaise Pascal (1623-1662) descobriu que a altura da coluna era continuamente reduzida à medida que o aparelho era levado por uma montanha acima. O instrumento de Torricelli é agora chamado de barômetro.

O Principio do Barômetro

Podemos compreender o princípio do barômetro supondo que o ar têm peso. Imaginemos uma coluna de ar, tendo sua seção reta com uma área de 1 polegada quadrada. A coluna estende-se da superfície da Terra até o topo da atmosfera. Sabemos agora que tal coluna de ar pesa 14,7 libras, se desprezarmos as pequenas variações que ocorrem de dia para dia. Qualquer outra coluna de ar tendo a mesma área de seção pesa precisamente o mesmo. É conveniente, portanto, referirmo-nos à pressão do ar ¾ o peso ou a força que atua na unidade de área. A pressão da atmosfera é simplesmente igual a 14,7 libras por polegada quadrada ( 1 quilograma-força por centímetro quadrado).

Observamos que a pressão‚ independente da área da seção que estivermos considerando. Se selecionarmos uma área de 10 polegadas quadradas, a coluna de ar pesará dez vezes mais, e a pressão será  exatamente a mesma.

Devemos a Pascal o passo seguinte para nossa compreensão do barômetro. Em 1653, ele mostrou que a pressão exercida sobre um fluido (líquido ou gás) é transmitida igualmente em todas as direções. Sabemos que a atmosfera pressiona a superfície do mercúrio com uma pressão de 14,7 libras por polegada quadrada. De acordo com o princípio de Pascal, essa pressão é exercida em todas as partes do mercúrio.

Ela também atua no mercúrio que está  no fundo do tubo. Mas não há  ar no topo do tubo, capaz de pressionar a coluna de mercúrio. A pressão atmosférica no fundo do tubo é contrabalançada somente pela coluna de mercúrio. Como o mercúrio é tão mais pesado que o ar, uma coluna de trinta polegadas pesa precisamente o mesmo que uma coluna de ar que tenha a mesma seção, e que se estenda até ao topo da atmosfera. As duas colunas se equilibram exatamente, porque ambas produzem a mesma pressão sobre o reservatório de mercúrio.

Nota do autor: Para explicar isso hoje, basta mencionar que o mercúrio da cuba age simplesmente como uma balança de pratos iguais e de diâmetro igual ao do tubo; em um dos pratos coloca-se a coluna de ar e no outro a coluna de mercúrio.

Como Pesar o Ar

Utilizando a bomba de ar, tanto Guericke como Boyle verificaram mais tarde o fato de que o ar tem peso . Isto foi feito pesando um recipiente de metal ou vidro antes e depois de o ar ter sido expelido dele. Ambos os cientistas verificaram que o recipiente perdeu peso quando o ar foi removido. Boyle descobriu que "a proporção da gravidade (peso) do ar para a  água, com o mesmo volume, é de 1 para 938". Em seus Discursos e Demonstrações sobre Duas Novas Ciências, Galileu apresenta a relação como sendo 1: 400. O dado verdadeiro, para a temperatura ambiente e ao nível do mar, é de cerca de 830.

A Elasticidade do Ar

Boyle publicou os resultados de suas experiências com a bomba de ar (seu "novo motor pneumático") em 1660. Essas experiências sugeriram-lhe que o ar tem uma certa elasticidade.

A pressão aplicada a um volume de ar confinado obriga-o a comprimir-se em um volume menor. Quando essa pressão é removida, o ar recupera seu volume anterior.

Após ler o livro de Boyle, Richard Towneley sugeriu ao autor uma hipótese "que supõe que as pressões e expansões estão em proporções recíprocas (inversas)". Imaginou, em outras palavras, que dobrando a pressão exercida sobre o ar faria seu volume reduzir-se à metade. Boyle logo provou que a idéia de Towneley estava correta, e esta se tornou conhecida como lei de Boyle.

Boyle utilizou um tubo curvo para sua experiência, como se mostra na parte (a) da ilustração a seguir.

 Aparelho de Boyle para medir a "mola de ar"

A perna menor do tubo foi hermeticamente fechada, e a perna maior ficou aberta e em contato com a atmosfera. Então, ele derramou mercúrio no tubo e inclinando freqüentemente o tubo, permitiu que escapasse uma parte do ar preso na perna menor. Após muitos ajustamentos, o mercúrio elevou-se exatamente na mesma altura, em ambas as pernas. A pressão do ar na perna fechada era então necessariamente igual à pressão atmosférica que pressionava o mercúrio na perna aberta. Se as duas pressões fossem desiguais, o mercúrio não teria subido tão alto na perna que tivesse a pressão maior. Assim sendo, Boyle concluiu que o ar encerrado na perna fechada tinha uma pressão igual a uma atmosfera ¾ 14,7 libras por polegada quadrada.

Ele então derramou mais mercúrio, como na parte (b) do diagrama, até que

o ar encerrado na perna menor fosse reduzido por condensação (compressão), ocupando apenas metade do espaço que ocupava ..., anteriormente; lançamos nossos olhos para a perna maior do tubo ..., e observamos, com prazer e satisfação, que o mercúrio do tubo maior estava 29 polegadas mais alto que o outro.

Podemos compreender este resultado relembrando a experiência de Torricelli. O ar que pressiona o mercúrio na perna aberta da parte (a) é igual em pressão a uma coluna de mercúrio de 29 ou 30 polegadas de altura, dependendo da pressão atmosférica.

Uma tal coluna de mercúrio produziria uma pressão de 1 atmosfera, a pressão inicial atuando na parte fechada. Na parte (b), Boyle verificou que uma coluna de mercúrio de 29 polegadas de altura reduziu o volume do ar encerrado à metade de seu volume inicial. Entretanto, devemos adicionar a essas 29 polegadas outras 29 ou 30 polegadas adicionais de mercúrio, equivalentes à pressão atmosférica. Afinal de contas, a pressão atmosférica continua pressionando o mercúrio na perna aberta.

É claro, portanto, que a pressão do ar encerrado na parte (b) corresponde a cerca do dobro da pressão do mesmo ar na parte (a). Igualmente, a redução do volume foi produzida dobrando-se a pressão que atua sobre o ar encerrado.

Boyle repetiu a experiência para muitas pressões e volumes diferentes, encontrando que o volume era sempre inversamente proporcional à pressão aplicada. Em termos matemáticos,

Volume a (1/pressão) ou

Volume = k/pressão ou

V = k/P onde k é uma constante de proporcionalidade, dependendo das unidades nas quais são medidos o volume e a pressão.

O Inicio da Química Científica

Os alquimistas, iatroquímicos e metalurgistas tinham obtido importantes resultados práticos na altura da metade do século dezessete, mas pouco tinham feito para promover uma compreensão científica dos processos químicos. O desenvolvimento da ciência da Química é um exemplo clássico da interdependência da experiência e da teoria. Ressalta a importância de combinar os fecundos fatos experimentais com as idéias teóricas iluminadas que levam à compreensão e à unidade. Embora as teorias de Aristóteles fossem estéreis sem a prova experimental, o uso da experimentação sem a orientação teórica foi um trabalho cego. Antes que pudesse emergir uma ciência da massa de fatos químicos conhecidos, teria que surgir uma teoria que estivesse em estreita concordância com a experiência.

Três grandes obstáculos permaneciam no caminho da evolução da Química.

O primeiro era o fato ainda não reconhecido de que o ar ¾ agora uma substância pesada ¾ entra em muitos processos químicos como um componente ou reagente invisível.

O segundo era a crença errônea de que o fogo é o elemento universal de análise, por meio do qual os compostos químicos são separados em seus elementos.

O terceiro era a severa limitação colocada diante dos teoristas pelo pequeno número de elementos básicos.

Os aristotelianos ou peripatéticos acreditavam ainda nos quatro antigos elementos de Empédocles: terra, água, ar e fogo. Os seguidores de Paracelso favoreciam outros princípios ou elementos: sal, enxofre e mercúrio. Dependendo da preferência pessoal, outros selecionavam um ou dois elementos de cada lista.

O pequeno número de elementos básicos levou a atribuir o mesmo nome a muitas substâncias diferentes. Também a falta de uma lista de elementos e compostos aceita por todos levou à confusão e à falta de compreensão mútua entre os químicos.

O fato de que qualidade ocultas, espíritos e formas substanciais fossem invocadas para explicar as reações químicas confirmava a opinião geral de que a Química era uma espécie de mágica ou, na melhor das hipóteses, uma arte.

As pesquisas de Galileu na mecânica tinham estabelecido um modelo de pesquisa científica em uma ciência afim. Era tempo agora de uma reavaliação crítica das teorias químicas comuns da época. Também se fazia necessário um método científico para conduzir e interpretar a experimentação química.

Boyle e Hooke penetraram nesse vazio intelectual e lançaram os fundamentos da ciência da Química.

O Químico Cético

Dos muitos livros escritos por Boyle, o mais importante foi O Químico Cético, que apareceu em 1661. Boyle começou atacando a idéia de que há  somente um pequeno número de elementos químicos fundamentais. Ele compara essa preconcepção do mundo a um homem tentando decifrar um livro no qual "ele fosse familiarizado com apenas três letras". "O Livro da Natureza", observou ele, pode necessitar de mais que três ou quatro elementos para sua compreensão. Boyle tinha finalmente banido a idéia dos gregos de que a Química podia, como a Geometria, ser desenvolvida logicamente, partindo de alguns poucos princípios auto-explicativos. Prosseguiu mais além, dividindo todas as substâncias puras em duas classes. Uma delas continha as substâncias que haviam, até ali, resistido a todas as tentativas de decomposição ou divisão em substâncias mais simples que elas próprias. A essas ele chamou de elementos verdadeiros. A segunda classe de substâncias puras inclui aquelas que, por um meio ou por outro, podem ser decompostas em substâncias mais simples. A essas, ele chamou de compostos.

A idéia de que as preconcepções teóricas deviam dar lugar aos fatos experimentais tinha finalmente encontrado um campeão entre os químicos.

Boyle atacou também a noção de que o fogo é o método universal de separação de todos os compostos em seus elementos.

Salientou que o vidro não pode ser "analisado" pelo fogo, muito embora todos os químicos soubessem que ele contém minerais (areia e óxido de cálcio) e as cinzas de plantas queimadas (soda ou potassa). Acrescentou que mesmo quando o fogo separa uma substância em novos corpos químicos, estes não são elementos necessariamente. Para ilustrar, a madeira produz fuligem e cinzas quando queimada, e óleo, espíritos, água e carvão, quando destilada. Seguramente, todas estas substâncias não são elementos.

Boyle também observou a importância do ar nas reações químicas. Se o carvão for queimado em ar livre, será  reduzido a cinzas, mas não se calcinará  de maneira alguma se for aquecido ao rubro em um vaso fechado. Seu interesse pelo ar e pelo fogo quase levou Boyle à descoberta do oxigênio. Ele compreendeu que apenas uma parte do ar era necessária para a combustão:

"Deve haver no resto da atmosfera alguma substância singular devido à qual o ar é tão necessário à manutenção da chama."

Com a ajuda de sua bomba de ar, Boyle mostrou também que alguma coisa existente no ar é necessária para a vida animal. Embora tivesse falhado em identificar essas "partes" do ar, ele deu vida à idéia de uma substância vital contida no ar. Cem anos depois, Lavoisier iria provar que o oxigênio é necessário tanto para a vida como para a combustão.

Hooke e outros expandiram as idéias de Boyle nos campos da combustão e da respiração. Hooke mostrou que a parte do ar consumida por uma chama é a mesma parte consumida na respiração. Demonstrou também que um rato viveria mais tempo em um vaso contendo ar comprimido do que em um outro contendo ar à pressão normal. Em 1663, Wren sugeriu que o ar contém vapores salitrosos que sustentam a vida, e Hooke estendeu o conceito para incluir a combustão. Em 1665, Hooke provou experimentalmente que as sementes necessitam de ar para se desenvolverem.

Muito progresso tinha sido conseguido, desde a invenção do barômetro e da bomba de ar. O ar tomara-se conhecido como uma substância material que sustenta a vida e influencia certas reações químicas. Representava um terceiro estado da matéria. A compressibilidade ¾ conforme descrito pela Lei de Boyle ¾ era uma característica da matéria no estado de vapor.

A teoria da matéria teve que levar em conta este fato. Demócrito ensinara que a matéria consiste de  átomos distintos separados por espaços vazios, conceito este que se encaixava bem com a observação da compressão. Assim, a idéia do  átomo parecia muito mais plausível do que nas épocas anteriores. A ocasião parecia propícia para um grande desenvolvimento teórico da Química, mas este não veio senão muito tempo depois.

O calor, por exemplo, era ainda um elemento químico, em vez de um ramo da Física. Ao contrário do ar, os espíritos ainda não eram compreendidos como substâncias químicas em estado gasoso. Os golpes de discernimento que ocorreram aqui e ali estavam destinados a serem asfixiados pela mera especulação, perdendo-se para os outros cientistas. A troca de comunicações era pequena entre os químicos, devido a uma tradição de segredo e à falta de uma terminologia precisa que facilitasse a comunicação. Alguns progressos nessas áreas estavam então começando a ocorrer na Mecânica, sob a influência de Newton e outros. Não obstante, os químicos não tinham uma noção adequada dos progressos realizados pelos físicos do século dezessete. Ainda transcorreria uma centena de anos às apalpadelas, antes que a precisão dos físicos se transmitisse à arte da Química. A revolução da Química não podia ocorrer até que os químicos tivessem apreendido suficientemente a Física para manter ambas as ciências constantemente diante do espírito.

 

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